COMO COLHER A PASSAGEM DO TEMPO

Solstício e Natal anunciam a proximidade de um Ano Novo e a possibilidade de um Novo Tempo, de mudança e escolhas
 
Pintura a óleo de uma colheita de arroz | Ilustração: Kwang Gallery/Shutterstock
Pintura a óleo de uma colheita de arroz | Ilustração: Kwang Gallery/Shutterstock
 

Milhões de brasileiros, como se agricultores fossem, declaram nesta época para amigos, conhecidos e familiares os seus votos de feliz colheita. Sim, Feliz Ano vem do latim: Feliz Colheita. A primeira divisão de qualquer calendário é a dos anos. Um ano equivale a um ciclo completo da Terra em torno do Sol. Ano (annus) significa colheita, a produção de grãos do ano. Ano = colheita.

Na Roma Antiga, Anona era a deusa da colheita, do ano (ano-na), e presidia a safra. Ela personificava a produção agrícola anual e a abundância. Em moedas romanas, Anona é representada com uma cornucópia no braço (cornu copiae, corno copioso), repleta de produtos agrícolas, ao lado da proa de uma galera. Já naqueles idos, o barco indicava a relevância da logística para a agricultura, o necessário transporte de grãos para suprir Roma pelo mar. A deusa cedeu seu nome à família botânica das anonáceas, a das graviolas, araticuns, frutas-do-conde, pinhas e outras delícias.

Sestércio de Nero proveniente de Lugduno no qual Anona aparece à esquerda segurando sua cornucópia encarando Ceres, que está sentada à direita segurando um archote; um altar com buquê está entre elas e a popa do navio atrás | Foto: Reprodução

 

No Brasil, no final do ano, o solstício de verão marca o tempo da colheita e da safra. A agricultura segue ciclos cósmicos e deles tira proveito. É tempo de abundância. A Companhia Nacional de Abastecimento prevê em 2021/2022 uma safra recorde de grãos: 290 milhões de toneladas, 15% superior à anterior. A área da soja ultrapassou 40 milhões de hectares. No milho, a expectativa é de um crescimento de mais de 30%, se São Pedro colaborar com a segunda safra.

Como Anona com suas galeras, os produtos da cornucópia brasileira navegam para todo o mundo. O agronegócio exporta para 190 países e diversifica os produtos. Houve a abertura de mercado para 69 produtos em 30 países diferentes: maçãs para Colômbia, Honduras e Nicarágua; gergelim para o México; gengibre e sementes para o Egito; bovinos para o Vietnã; carne e material genético bovino para o Iêmen; e um incremento nas vendas ao Chile. Recorde de exportações no acumulado de janeiro a novembro de 2021: US$ 111 bilhões, acima do anterior, de US$ 101 bilhões em todo 2018. Elas cresceram 18,4% em relação a 2020.

Ao mencionar um ano, evoca-se uma colheita, abundante ou não. Anona aparece nas moedas do Império Romano ao lado de 1 módio, medida agrária de capacidade e extensão, cerca de 1 alqueire, também conhecida por mina. A passagem do ano propicia medidas, balanços e avaliações. Tempo de pesar e medir as escolhas passadas. Qual sua colheita em 2021? Quanto pesa? Vale quanto pesa? Em volume e extensão?

No agronegócio, os números estão praticamente medidos e pesados. O Valor Bruto da Produção (VBP) da agropecuária brasileira, da porteira para dentro, deverá totalizar R$ 1,16 trilhão em 2022. Um crescimento de 4,5% em relação a 2021, cuja expansão já fora de 10% sobre 2020. Nas 21 lavouras consideradas no cálculo do VBP, o Ministério da Agricultura prevê um valor total de R$ 811 bilhões, ou 7,30% a mais em relação a 2021 (R$ 756 bilhões, 12,3% acima de 2020).

Colheita nos Estados Unidos | Foto: Taylor Siebert/Unsplash

Mais um ano se encerra. Diante de um tempo em fuga constante, os homens buscaram marcos de referência na regularidade dos fenômenos naturais do cosmos para construir seus calendários: fases da lua, movimento solar, estações. Impossível viver sem calendário, esse estruturador das agendas. Um calendário dá a impressão de domínio sobre algo do qual ninguém escapa: o tempo. E ele é usado como metáfora das condições meteorológicas, sobretudo na agricultura. Tempo bom para colher? Tempo certo para plantar no calendário agrícola? O que é um calendário?

Em latim, cal (endário) significa proclamar ou convocar (como em inglês, call). No primeiro dia de cada mês lunar, chamado calendes, os sacerdotes romanos proclamavam se as nonas — horas de oferendas — caíam no quinto ou no sétimo dia (nove dias antes dos idos). O livro das calendas, o calendarium, era usado para marcar os dias das festividades religiosas.

Calendário, em latim, também designava o livro de contas ou vencimentos, no sentido de compromisso ou pagamento devido. Quem procura um calendário e nele constrói sua agenda busca organizar seus compromissos, conhecer seus vencimentos e dividir melhor seu tempo. Encerra-se o Ano do Senhor 2021, o Anno Domini 2021, o AD 2021. Vem aí o AD 2022. A ser percorrido mês a mês.

Os meses (mensis) têm como raiz o verbo medir e evocam medida percorrida ou atravessada. Cada mês percorrido no calendário possui origem e significado próprios. O nome de janeiro é muito adequado. Ele abre o ano e evoca Jano, Janus, deus da dupla face, um dos mais antigos deuses de Roma. Ele simboliza transições e passagens. E presidia os começos e os inícios, olhava os prós e os contras, o exterior (profano) e o interior (sagrado), o imanente e o transcendente. Daí a palavra janela: possibilidade de abertura e visão nos dois sentidos. Por ela se olha para dentro e para fora. Ser capaz de olhar para dentro e para fora de si mesmo em cada momento da vida. Ver e ir além.

O papa Gregório XIII, em 1580, com matemáticos e astrônomos, definiu 1 de janeiro como o início do ano civil. Com o calendário gregoriano, hoje em uso no mundo inteiro, a Igreja Católica substituiu definitivamente o juliano, do imperador Júlio Cesar. Independente de outros calendários (muçulmano, judaico, chinês etc.), quem regula os voos dos aviões, satélites, tratados internacionais, GPS das máquinas agrícolas, vencimentos dos boletos e o cotidiano de bilhões de pessoas é o calendário cristão, o gregoriano.

Calendário Juliano | Foto: Reprodução

O papa Gregório consagrou o deslocamento do início do ano de março (equinócio) para janeiro (solstício), uma semana após a data fixada para celebrar o nascimento de Jesus. O Ano do Senhor começa com sua primeira manifestação pública, ao ser apresentado no templo por José e Maria. Com isso, a Igreja ressignificou os nomes dos meses. Setembro deixou de ser o mês sete, o sétimo depois de martius, março (primeiro mês do calendário romano). Idem para outubro (oitavo), agora o décimo mês. E para novembro e dezembro, nono e décimo, agora, décimo primeiro e décimo segundo meses do ano. Eles guardaram seus nomes e não mais suas numerações.

O agronegócio moderno, tecnológico e integrado com o setor industrial impulsiona a economia brasileira

A cada mês, no agronegócio brasileiro, crescem as agroindústrias de alimentos, vestuário, calçados, biocombustíveis, máquinas e equipamentos; as unidades frigoríficas, de processamento e fornecimento de proteína animal; as empresas de transporte, armazenagem e os complexos aeroportuários voltados à exportação. Segundo o Centro de Estudos Avançados em Economia Aplicada, o PIB do agronegócio, em 2021, alcançará 30% do PIB do Brasil. Em 2010, era de 21%. Esse crescimento tem um enorme efeito multiplicador nas economias regionais e propicia o surgimento de shopping centers, hospitais, universidades, startups, consultorias, transportadoras, revendas de veículos, agroindústrias e todos os estabelecimentos ligados à dinâmica do campo. Como afirma Graziano, o agronegócio moderno, tecnológico e integrado com o setor industrial impulsiona a economia brasileira. A economia clássica sempre teorizou o contrário: quanto mais desenvolvido um país, menor a relevância de sua agricultura. No Brasil recente, essa teoria não se aplica. O conceito de agronegócio foge das teorias do passado e projeta novos tempos para o país.

No final do ano, o solstício de verão ilumina não apenas a Terra, o espaço em suas três dimensões. Com o simbolismo natalino, ele ilumina o tempo, a quarta dimensão do Criado. Para muitos, a ordem inteligível, sempre presente no escoar do tempo, é a do movimento perpétuo, a de sua inexorável passagem (chronos). Solstício e Natal anunciam a proximidade de um Ano Novo e a possibilidade de um Novo Tempo, de mudança e escolhas. A cada um. Agora. Já. No momento certo (kairós). Escolha e colha.